Aproximação que começou há 15 mil anos foi motivada por orfandade de filhotes, acolhidos por fêmeas humanas. Em São Paulo, cães de rua têm longa história de sofrimento, mutilação e morte
por Nelson Aprobato Filho
Índia Guajá amamenta porco-do-mato: prática comum também com filhotes de lobo ajudou na aproximação com os humanos
A mulher e seu cão (em imagem termográfica): em todas as culturas humanas, há um padrão de relacionamento com os cães
Tudo começou há 15 mil anos, no Paleolítico Superior, com a primeira divisão de trabalho entre os sexos da espécie humana. Os homens caçavam e garantiam a segurança do grupo. As mulheres, com vida mais sedentária, coletavam alimentos e cuidavam dos filhos. Foi neste contexto que se iniciaram as relações entre humanos e canídeos. Pesquisas na área de zooarqueologia e antropologia sugerem que foram as mulheres que forjaram a aproximação entre as duas espécies, e as responsáveis pelo primeiro impulso de domesticação e convivência harmoniosa entre humanos e os ancestrais dos cães domésticos de hoje, os lobos selvagens.
Baseada em consistente bibliografia, a pesquisadora Mary Elizabeth Thurston, no livro The lost history of the canine race, uma elegante síntese sobre o tema, aponta que os primeiros contatos se deram de forma prosaica, mas admirável: a adoção. Matilhas de lobos sempre ameaçaram populações humanas. E os homens, determinados a se defender de ataques, eliminavam os animais adultos que rondavam os entornos de suas habitações. Ao abater os adultos, no entanto, inúmeros filhotes ficavam órfãos, entregues a um meio hostil, com chances mínimas de sobrevivência. Atraídos principalmente pelos odores produzidos pelas atividades humanas, os filhotes acabavam se aproximando. E as mulheres, em vez de simplesmente darem a eles restos de alimentos, amamentavam-nos com o mesmo leite dispensado aos filhos. Essa aproximação fez com que filhotes se integrassem ao grupo, na qualidade de recém-chegados
e se ambientassem ao convívio humano. A pesquisadora aponta que evidências dessa teoria foram encontradas a partir do século 19, entre povos indígenas em várias partes do mundo. Elas comprovariam a maneira como cães e humanos se aproximaram para consolidar uma relação que, agora, faz desse animal o melhor amigo do homem.
Quando iniciei a elaboração deste artigo deparei-me com um livro que, a meu ver, é uma sugestiva leitura para todos aqueles que trabalham ou apenas se interessam por animais. Trata-se
de Cool cats, top dogs, and other beastly expressions, escrito pela especialista em dicionários Christine Ammer. São mais de 1.200 palavras, provérbios e expressões da língua inglesa relacionadas a animais, ou melhor, criadas através dos tempos a partir das relações entre humanos e outras espécies animais que os cercam.
O que torna o livro ainda mais fascinante é perceber, com a ajuda dele, que muitas das palavras, provérbios e expressões em inglês têm correspondência, por exemplo, em português. Trata-se, obviamente, de um processo de universalização de ideias, conceitos e, principalmente, comportamentos humanos. A contribuição mais importante da autora, nesse caso, é a dimensão histórica, ou etimológica, que procurou dar a cada item incluído no livro. Neste sentido, vale destacar aqui a frase com a que Christine Ammer intitula o capítulo específico sobre o universo sociocultural criado em torno do cão. Provocativamente, ela chamou o capítulo de “A dog’s life”, “uma vida de cachorro”, ou “uma vida de cão” expressão conhecida e largamente utilizada no Brasil e em muitas outras partes do mundo.
Leia mais em http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/fidelidade_e_traicao_entre_caes_e_seres_humanos_2.html
Nelson Aprobato Filho é doutor em história pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo com a tese O couro e o aço. Sob a mira do moderno: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da Pauliceia, final do século XIX / início do XX, defendida em 2007. Autor do livro Kaleidosfone
– As novas camadas sonoras da cidade de São Paulo, fins do século XIX – início do XX publicado pela Edusp/ Fapesp em 2008, trabalho originalmente defendido como dissertação de mestrado. Atualmente é teaching assistant e program assistant do Department of Romance
Languages and Literatures da Harvard University, EUA.
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